O PS pôs o país a discutir pela milésima vez a liberalização do aborto, quando e como quis, perante a ineficiência cúmplice e acéfala da oposição da alegada direita, que embarcou alegremente no engodo. E é assim que há dois meses que não se fala no espaço público de quase mais nada, para gáudio da extrema-esquerda e satisfação de Sócrates, que lá continua a sua vida. A liberalização do aborto não é seguramente uma urgência nacional, embora seja assunto de espectáculo e de distracção geral garantida.
O ministro da Economia continua a ser o patinho feio do Governo, sempre a desfazer com método insuperável a teia mediática que o Primeiro-Ministro, com insuperável competência vai urdindo, para pôr o país a discutir o que lhe convém e não o que convém ao país.
A RTP, empresa de televisão do Estado, conseguiu também o impensável. Mobilizar o país para uma votação recreativa e inconsequentemente anacrónica, sobre qual terá sido o maior português de sempre, onde mistura portugueses literalmente desconhecidos com muitos outros tão comparáveis entre si como José Mourinho, Luís de Camões e a obscura ministra de Educação de Santana Lopes.
Parece que não gostámos de ser confrontados com a verdade: a de que os portugueses amam no inconsciente Salazar e Cunhal. Será de utilizar o ditado do político de Sta. Comba Dão, que em política o que parece é? Não sei. Talvez não. Mas não deixa de ser bizarro ver ir a votos os dois maiores adversários da democracia do século XX português. E lá andam colunistas e intelectuais a discutir as pessoas, os critérios, a seriedade da votação, a mobilização das militâncias, o envio de sms’s a atrair incautos a votar nas duas figuras, a psiquiatria da Nação. E Sócrates lá vai fazendo o seu caminho.
O PSD e o CDS parece só terem um assunto que os preocupa. Deitar os respectivos líderes abaixo o mais depressa e com o maior espectáculo possível. Para quê? Para romperem com o bloco central dos interesses? Não. Para mudarem o seu projecto político com a finalidade de mobilizar o país para substituir Sócrates? Não. Para construírem um projecto político diferente, alternativo e mobilizador? Não, visto que concordam com o essencial do sistema de que são paizinhos desvelados. Apenas para garantir que as listas de deputados em 2009 vão ter lá os seus nomes para mais quatro anos de paz parlamentar e sossego pessoal. As cadeiras, sempre as cadeiras.
Para cúmulo, a Câmara de Lisboa entrou neste espectáculo. A situação da CML é o espelho simbólico do fracasso do PS, do PSD e do CDS a nível nacional. É uma miniatura condensada, um episódio compacto, como os que as televisões costumam passar aos fins de semana das telenovelas venezuelanas, da vida política portuguesa. E promete.
No meio disto tudo a esperança no futuro é difícil, mesmo que venham investimentos indianos e chineses aproveitar a mão de obra barata portuguesa. Mas é essencial lutar por ela. É, aliás, nestes momentos, que é mais necessário.
(publicado na edição d ehoje do Semanário)